sábado, 31 de março de 2012

The Book People: Bagagem de Mão, Vítor Nogueira

*

PAPÉIS, PALAVRAS


Rua do Crucifixo, por exemplo.
Conheço as escadas deste prédio
há pelo menos uma década. Eis o alfarrabista
de baixo, o que nunca me reconhece

e todavia se lembra, com razoável pormenor,
de tudo o que lhe vou comprando. O tempo
cultiva nesta sala pudores
por qualquer razão indispensáveis.

Não está certo nem errado. É apenas assim.
Talvez um complexo de lealdade.
As pessoas nascem de uma maneira
e não conseguem fugir dela. Será isso?

Só depois é possível remexer todos os cantos,
procurar no cimo dos armários
os segredos difíceis de aceder:
papéis, palavras, coisas que não ardem.



Vítor Nogueira in Bagagem de Mão (& etc, 2007)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

The Book People: Penúltimos Cartuchos, Miguel Martins

*

A diferença entre os pequenos e os grandes
poetas é a que separa o ilusionismo da magia.


                                 *


Quem acha que a vida é para levar a sério
deve andar convencido de que a morte é a
brincar.



Miguel Martins in Penúltimos Cartuchos (Tea For One, 2008)

sábado, 11 de fevereiro de 2012

The Book People: O Tempo dos Assassinos, Henry Miller

*
[...]

O que nós todos gostávamos era de poder dar uma escapadela. Estamos fartos, totalmente enjoados dos nossos trabalhos, mas vamos ficando. E ficamos porque nos falta a coragem, porque nos falta a imaginação para lhe seguir o exemplo. Não é por nenhum sentido de solidariedade que ficamos! Não! A solidariedade é um  mito, pelo menos nos tempos que correm. A solidariedade é para os escravos que ficam à espera até que o mundo se transforme num enorme covil de lobos, para depois se atirarem todos juntos e desatarem a rasgar e despedaçar o que lhes aparecer pela frente, como animais invejosos. Rimbaud era um lobo solitário. E não se escapuliu pela porta das traseiras com o rabo entre as pernas. Não, nada disso. Assoou-se ao Parnaso, e aos juízes, aos padres, aos professores, aos críticos, aos condutores de escravos, aos ricaços e aos palhaços que constituem a nossa distinta sociedade cultural. E não se orgulhem de pertencer a uma época melhor que a dele! Não pensem nem por um momento que esses miseráveis, esses maníacos, essas hienas, esses falsários de todos os quadrantes acabaram! Este problema é tão vosso como foi dele! Mas dizia eu que Rimbaud não estava preocupado com o facto de não ser aceite... é que desprezava as satisfações mesquinhas que a maior parte de nós anseia. Percebeu que era tudo uma fedorenta porcaria, percebeu que tornar-se em mais um número histórico não o levava a lado nenhum. Queria viver, queria mais espaço, mais liberdade: queria exprimir-se, fosse como fosse. E portanto disse: "Vai-te foder! Vão-se foder todos!" E, dito isto, abriu a braguilha e pôs-se a mijar sobre as obras.

[...]


Henry Miller in O Tempo dos Assassinos, tradução de Manuela R. Miranda (Hiena Editora, 1985)

sábado, 14 de janeiro de 2012

The Book People: O Som do Sôpro, António Barahona

*
ORIENTAÇÃO



Escrevi milhares de versos
para esquecer. Amei algumas mulheres
para lembrar. Agora já posso dizer
o som em carne viva.

A cidade assemelha-se a um acampamento
abandonado no deserto. Os nómadas
partiram nos seus camelos, com provisão
de tâmaras e água.
Há restos de detritos, sinais de trânsito,
folhas arrancadas a revistas pornográficas,
ao sabor do vento, por entre pétalas sêcas.

Há resíduos de sítios onde estive contigo,
fragmentos de versos de vidro, tudo
muito nítido, anotado, vincado a oiro.



António Barahona in O Som do Sôpro (Poesia Incompleta, 2011)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Bücherverbrennung


Era uma vez


Era uma vez um poeta, escrivão obscuro, que trabalhava muscularmente o poema. Lavrava a página com o seu arado lírico até ao incêndio do horizonte. A obra cresceu. Teve uma belíssima colheita poética. Morreu de fome.



terça-feira, 10 de janeiro de 2012

The Book People: Fahrenheit 451, François Truffaut (UK, 1966)

*
http://www.youtube.com/watch?v=N1YsPKjOirs

The Book People: Fahrenheit 451, Ray Bradbury

*
[...]

- You follow the river upstream 'til you come to the old steam railway line. Then you go on and you go on until you get to where the book people live.
           
- The good people?

- No, book. The book people. You've not heard of them?

- No.

- People who vanished. Some were arrested and managed to escape. Others were released. Some didn't wait to be arrested. They just hid themselves away. Up in the farm country; the woods and the hills. They live there in little groups. The law can't touch them. They live quite peaceably and do nothing that's forbidden. Though, if they came into the city, they might not last long.

- But how can you call them book people... If they don't do anything against the law?

- They are books. Each one, men and women. Everyone, commits a book they've chosen to memory, and they become the books. Of course, every now and then, someone gets stopped, arrested. Which is why they live so cautiously. Because the secret they carry is the most precious secret in the world. With them, all human knowledge would pass away.

[...]


Ray Bradbury in Fahrenheit 451